Carta de Friburgo
:: 2007-02-27 Por João Carvas (estudante de doutoramento no Laboratory of Vascular Biology da Fribourg Medical Faculty, Friburgo, Suíça)Com o nascimento da Dolly, a ciência confrontou-nos com a possibilidade real da clonagem de seres humanos e depois dela muitos outros mamíferos foram clonados com sucesso. A primeira resposta dos sistemas políticos à mediática Dolly foi a proibição da clonagem em humanos sem apelo nem agravo, não distinguindo entre clonagem reprodutiva e clonagem para investigação biomédica. Preocupa-me este repentino afastamento entre a sociedade e o conhecimento, mas também a sua utilização incorrecta.
Hoje, a ciência está sob suspeita no tocante à investigação genética, à clonagem e aos alimentos transgénicos, o mais das vezes sem que este receio tenha uma base racional. É constante o afluxo de "notícias choque" e de textos alarmistas advertindo o leitor para os perigos da pesquisa genética, por exemplo, e dizendo que o cientista se pretende substituir a Deus.
A toda esta desconfiança, acrescenta-se um fascínio paradoxal, que exige da ciência a resposta para todos os grandes desafios e ameaças da humanidade. Depois de Copérnico retirar o Homem do centro do universo e Darwin o obrigar a pôr-se ao nível dos outros seres que habitam o planeta, abriram-se duas feridas profundas no ego humano. Inconscientemente estas ainda hoje produzem certa angústia no Homem.
Onda de creacionismo
É daqui que parte alguma da hostilidade em relação à ciência e aos cientistas, e alguma anti-ciência onde pulula o relativismo cognitivo e cultural e que conta com uma grande mediatização. Veja-se a emergência nos EUA de uma onda de defensores do creacionismo, agora pomposamente chamado "desenho inteligente" por oposição à teoria da evolução de Darwin, testada e validada todos os dias pela comunidade científica.
Muito do que sai destas áreas arrepia-se perante conceitos como "realidade", "objectividade" e "verdade", que são a essência da ciência e também do jornalismo científico. Assim, privilegiam o intuitivo, o místico, o marginal, abrindo alas para as astrologias e o ocultismos, temas demasiado frequentes na nossa comunicação social.
Será então que o conhecimento científico é perigoso? Podemos dizer que ao longo da história há uma tendência para associar o conhecimento ao mal. Nas fundações do Cristianismo está a proibição de Adão e Eva se alimentarem dos frutos da árvore do conhecimento. Na mitologia grega, Prometeu foi castigado por ter oferecido aos mortais o fogo roubado dos deuses. Mesmo na literatura e no cinema modernos, a imagem do cientista é colada à de um insano que só produz monstros e catástrofes como o Dr. Frankenstein de Mary Shelley, que não olha a meios para saciar as suas curiosidades científicas.
uando se parte para a análise deste problema, convém diferenciar entre factos e valores, ou seja, entre ciência e ética. A ciência como actividade, não pode produzir ética, mas apenas descrever os fenómenos que estuda. Cabe então à ética avaliar o conhecimento gerado e as suas possíveis aplicações (tecnologia). Assim, temos a ciência (básica) – produtora de ideias, teorias – a tecnologia – produtora de objectos, bens, aplicações – e a ética, que regula o modo como se relacionam ciência e tecnologia.
Atrocidades nos campos de concentração
Apesar destas distinções, se quiserem um pouco artificiais, o cientista não está de maneira alguma isento de obrigações éticas. Pense-se, a título exemplar, no horror nazi sobre o sistema eugénico que pretendeu criar e que foi o primeiro passo para que alguns médicos cometessem verdadeiras atrocidades nos campos de concentração. Não houve neste caso o assumir de obrigações éticas.
Então, tendo em conta o nível de conhecimento da humanidade, e em oposição às posições anti-ciência pós-modernas, podemos afirmar que o conhecimento não só não é perigoso, como é intrinsecamente bom. Para o Homem, conhecer é tão importante como qualquer outra necessidade básica. Já a tecnologia, que deriva deste conhecimento pode ser nefasta.
Temos assistido nas últimas décadas a uma autêntica explosão do conhecimento nas ciências biológicas, mas a clonagem da ovelha Dolly e outras experiências científicas têm atraído a atenção dos media e da sociedade, levantando uma série de inquietações e problemas éticos. O preocupante é que sem qualquer reflexão se limite a produção de conhecimento, numa espécie de guerra preventiva contra os cientistas, não se procurando, isso sim, combater a má utilização desse conhecimento.
[Bibliografia: Tambosi, Orlando. É o conhecimento perigoso? Fronteiras entre ciência, tecnologia e ética. www.criticanarede.com] (jmcarvas@gmail.com]
1 comentário:
Só posso dizer que gostei do texto.
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