terça-feira, fevereiro 27, 2007

A Ética de uma ovelha

Carta de Friburgo

:: 2007-02-27 Por João Carvas (estudante de doutoramento no Laboratory of Vascular Biology da Fribourg Medical Faculty, Friburgo, Suíça)

Durante a semana passada cumpriu-se o quarto aniversário da morte da ovelha Dolly, clonada pelos cientistas Keith Campbell e Ian Wilmut. Através da transferência do núcleo de uma célula não reprodutiva (somática) - neste caso da glândula mamária - para um óvulo enucleado, e sua posterior transferência para um útero progenitor foi possível clonar pela primeira vez um mamífero. Dolly acabou por ser abatida prematuramente depois de um aparente envelhecimento precoce, cujas razões ainda são motivo de controvérsia na comunidade científica.

Com o nascimento da Dolly, a ciência confrontou-nos com a possibilidade real da clonagem de seres humanos e depois dela muitos outros mamíferos foram clonados com sucesso. A primeira resposta dos sistemas políticos à mediática Dolly foi a proibição da clonagem em humanos sem apelo nem agravo, não distinguindo entre clonagem reprodutiva e clonagem para investigação biomédica. Preocupa-me este repentino afastamento entre a sociedade e o conhecimento, mas também a sua utilização incorrecta.

Hoje, a ciência está sob suspeita no tocante à investigação genética, à clonagem e aos alimentos transgénicos, o mais das vezes sem que este receio tenha uma base racional. É constante o afluxo de "notícias choque" e de textos alarmistas advertindo o leitor para os perigos da pesquisa genética, por exemplo, e dizendo que o cientista se pretende substituir a Deus.

A toda esta desconfiança, acrescenta-se um fascínio paradoxal, que exige da ciência a resposta para todos os grandes desafios e ameaças da humanidade. Depois de Copérnico retirar o Homem do centro do universo e Darwin o obrigar a pôr-se ao nível dos outros seres que habitam o planeta, abriram-se duas feridas profundas no ego humano. Inconscientemente estas ainda hoje produzem certa angústia no Homem.

Onda de creacionismo

É daqui que parte alguma da hostilidade em relação à ciência e aos cientistas, e alguma anti-ciência onde pulula o relativismo cognitivo e cultural e que conta com uma grande mediatização. Veja-se a emergência nos EUA de uma onda de defensores do creacionismo, agora pomposamente chamado "desenho inteligente" por oposição à teoria da evolução de Darwin, testada e validada todos os dias pela comunidade científica.

Muito do que sai destas áreas arrepia-se perante conceitos como "realidade", "objectividade" e "verdade", que são a essência da ciência e também do jornalismo científico. Assim, privilegiam o intuitivo, o místico, o marginal, abrindo alas para as astrologias e o ocultismos, temas demasiado frequentes na nossa comunicação social.

Será então que o conhecimento científico é perigoso? Podemos dizer que ao longo da história há uma tendência para associar o conhecimento ao mal. Nas fundações do Cristianismo está a proibição de Adão e Eva se alimentarem dos frutos da árvore do conhecimento. Na mitologia grega, Prometeu foi castigado por ter oferecido aos mortais o fogo roubado dos deuses. Mesmo na literatura e no cinema modernos, a imagem do cientista é colada à de um insano que só produz monstros e catástrofes como o Dr. Frankenstein de Mary Shelley, que não olha a meios para saciar as suas curiosidades científicas.

uando se parte para a análise deste problema, convém diferenciar entre factos e valores, ou seja, entre ciência e ética. A ciência como actividade, não pode produzir ética, mas apenas descrever os fenómenos que estuda. Cabe então à ética avaliar o conhecimento gerado e as suas possíveis aplicações (tecnologia). Assim, temos a ciência (básica) – produtora de ideias, teorias – a tecnologia – produtora de objectos, bens, aplicações – e a ética, que regula o modo como se relacionam ciência e tecnologia.

Atrocidades nos campos de concentração

Apesar destas distinções, se quiserem um pouco artificiais, o cientista não está de maneira alguma isento de obrigações éticas. Pense-se, a título exemplar, no horror nazi sobre o sistema eugénico que pretendeu criar e que foi o primeiro passo para que alguns médicos cometessem verdadeiras atrocidades nos campos de concentração. Não houve neste caso o assumir de obrigações éticas.

Então, tendo em conta o nível de conhecimento da humanidade, e em oposição às posições anti-ciência pós-modernas, podemos afirmar que o conhecimento não só não é perigoso, como é intrinsecamente bom. Para o Homem, conhecer é tão importante como qualquer outra necessidade básica. Já a tecnologia, que deriva deste conhecimento pode ser nefasta.

Temos assistido nas últimas décadas a uma autêntica explosão do conhecimento nas ciências biológicas, mas a clonagem da ovelha Dolly e outras experiências científicas têm atraído a atenção dos media e da sociedade, levantando uma série de inquietações e problemas éticos. O preocupante é que sem qualquer reflexão se limite a produção de conhecimento, numa espécie de guerra preventiva contra os cientistas, não se procurando, isso sim, combater a má utilização desse conhecimento.

[Bibliografia: Tambosi, Orlando. É o conhecimento perigoso? Fronteiras entre ciência, tecnologia e ética. www.criticanarede.com] (jmcarvas@gmail.com]

1 comentário:

Anónimo disse...

Só posso dizer que gostei do texto.